sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O Mundo dos Fanzines


Fanzines são publicações independentes, que geralmente podem versar por um ou vários temas, geralmente produzidos com baixo custo e são distribuídos ou vendidos por preços baixos, geralmente só cobrindo seu custo. Geralmente, é impresso de maneira artesanal e de forma numerada.

Os primeiros fanzines foram criados na década de 1930 nos Estados Unidos e reuniam principalmente discussões sobre ficção-cientifica entre fãs do tema. Os criadores do Superman, por exemplo, eram fanzineiros nesta época, antes de criarem a personagem ícone dos super-heróis. No Brasil, os primeiros fanzines são registrados de meados da década de 1960, também girando em torno de temas de ficção-científica. Seu maior autor na época foi o piracicabano Edson Rontani.

No final dos anos 70 e início dos anos 80, esse meio de publicação foi largamente utilizado pelo punks, que vinculavam suas ideias, assim como letras de músicas e informações sobre bandas e shows através dessa plataforma. Os fanzines também foram utilizados em larga escala pelo movimento estudantil nos anos 2000, servindo principalmente como meio de formação.

Abaixo seguem dois fanzines feitos ao longo da última greve na Ufscar, em julho de 2016:

 http://issuu.com/batatasemumbigo/docs/zine_sangue_nos_z__io_-_primeira_of?e=0/38217853

http://issuu.com/batatasemumbigo/docs/zine_da_greve?e=0/38217957

É importante notar, que desde o início de sua história, os zines sempre serviram como uma boa ferramenta de divulgação de ideias, principalmente no que diz respeito à culturas marginalizadas que encontraram nesse tipo de publicação, uma forma de se expressar e de divulgar suas ideias.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O "desvio" da Arte Situacionista

A Internacional Situacionista foi um grupo de poucos que atuaram ativamente do fim da década de 1950 até sua auto-dissolução definitiva em 1972. De um grupo que tomava para si discussões a respeito de arte e cultura, logo se transformou em um grupo que versava sobre política e ação. Sua principal publicação, a revista Internationale Situationniste teve 12 números, nos quais as principais discussões centravam sobre a auto-organização dos conselhos operários e a critica radical da vida cotidiana, principalmente aquela permeada pela sociedade do espetáculo.

Situacionistas em 1957.

Esta postagem versará sobre um conceito muito utilizado pelos situacionistas, o détournement que em uma tradução livre para o português significa "desvio, diversão, reencaminhamento, distorção, abuso, malversação, sequestro, ou virar ao contrário do curso ou propósito normal. Às vezes é traduzida como  “diversão”, mas esta palavra gera confusão por causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo.". Neste texto utilizaremos a tradução de "desvio", por acreditar que ela contenha um significado amplo e se encaixar perfeitamente no tema tratado, que será a Arte e sua subversão.

Os Situacionistas se destacam principalmente por um grupo alinhado e crítico aquilo que se convencionou chamar de Sociedade do Espetáculo, que resumidamente, na visão do grupo, seria aquela sociedade na qual estamos, onde os valores do "ser" se transformaram com o desenvolvimento capitalista para outras formas, que são, primeiramente o "ter" e finalmente, o que seria o estágio atual da sociedade, o "aparecer". Sendo assim, o atual desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo teriam criado uma importância primeva à imagem em detrimento da realidade.

Essas teses podem ser conferidas no filme e livro, Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, principal autor situacionista.

A partir dessa formulação de sociedade, os situacionistas criarão o sentido de "desvio" como forma de corromper essa dinâmica da Sociedade do Espetáculo.

As duas leis fundamentais do desvio apontadas inicialmente seriam: 1) a perda de importância de cada elemento "desviado", que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, a 2) reorganização em outro conjunto de significados que confere a cada elemento um novo alcance e efeito.

Essas leis fundamentais podem ser aplicadas como duas formas de desvio: os “menores“, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e que portanto toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores“, onde é feito o desvio de um elemento intrinsecamente significativo, o qual toma um dimensão diferente a partir do novo contexto.





As três imagens acima demonstram algumas práticas do desvio, a utilização de quadrinhos com seus balões com o texto alterado, ou então a farta utilização de pixações em muros, outra grande prática situacionista. O próprio filme de Guy Debord, linkado acima, é uma demonstração clara do uso do desvio, com imagens de arquivo sendo reinterpretadas de seus contextos originais, com o fim de ilustrar a narração, que em si, é crítica ao próprio conteúdo das imagens.

O "desvio" como método para criação na arte é algo ainda muito utilizado hoje, mesmo com a dissolução da Internacional Situacionista. Como escreveu os próprios em seu Guia para o uso do Détournement:

"Na realidade, é necessário eliminar todos resquícios da noção de propriedade pessoal nesta área. O aparecimento das já ultrapassadas novas necessidades por obras “inspiradas”. Elas se tornam obstáculos, hábitos perigosos. Não se trata de gostar ou não delas. Temos que superá-las. Pode-se usar qualquer elemento, não importa de onde eles são tirados, para fazer novas combinações. As descobertas de poesia moderna relativas à estrutura analógica das imagens demonstram que quando são reunidos dois objetos, não importa quão distantes possam estar de seus contextos originais, sempre é formada uma relação. Restringir-se a um arranjo pessoal de palavras é mera convenção. A interferência mútua de dois mundos de sensações, ou a reunião de duas expressões independentes, substitui os elementos originais e produz uma organização sintética de maior eficácia. Pode-se usar qualquer coisa.

Desnecessário dizer que ninguém fica limitado a corrigir uma obra ou a integrar diversos fragmentos de velhas obras em uma nova; a pessoa pode também alterar o significado desses fragmentos do modo que achar mais apropriado, deixando os imbecis com suas servis referências às “citações”. Tais métodos paródicos foram freqüentemente usados para obter efeitos cômicos. Mas tal humor é o resultado das contradições dentro de uma condição cuja existência é tida como certa. Como o mundo da literatura quase sempre nos parece tão distante quanto o da Idade da Pedra, tais contradições não nos fazem rir. É então necessário conceber uma fase paródica-séria onde a acumulação de elementos desviados, longe de contribuir para provocar indignação ou riso em sua alusão a algum trabalho original, expresse nossa indiferença para com um inexpressivo e desprezível original, e se interesse em fazer uma certa sublimação."

quinta-feira, 28 de abril de 2016

PENSANDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS A PARTIR DOS CONCEITOS DE CULTURA E DIVERSIDADE

Esta postagem tem como pano de fundo contribuir com a reflexão da importância das relações étnico-raciais a cerca da cultura e diversidade, na tentativa de despertar a atenção da sociedade e mostrar que estes dois elementos fazem parte do universo do que entendemos por cultura popular. Para tal, extraiu-se algumas informações da obra "Relações étnico-raciais: um percurso para educadores", organizada por Silvério, Mattioli & Madeira.


E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos, não por ser exótico
 Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.
(CAETANO VELOSO)
 

Como é possível que após tantos anos de convivência em uma sociedade marcada pelas diferenças culturais, como a brasileira, um índio, um quilombola sejam ainda tratados com desconhecimento? Será que, de alguma forma, não afastamos de nós aqueles que consideramos diferentes e os tornamos exóticos? Esses questionamentos nos levam a pensar que, antes de discutirmos simplesmente a inclusão do tema da diversidade nos currículos escolares, temos que refletir sobre a nossa própria postura e relação às diferenças sociais e culturais.

A nossa formação escolar, na maioria das vezes, não problematizou a questão da diferença cultural nas relações sociais. Fomos formados para aceitar que o modelo hegemônico (o europeu) é o mais correto, o mais evoluído, aquele que devemos alcançar, o que por diversas vezes nos distanciou daqueles que são diferentes desse modelo. No nosso caso, os negros, indígenas e homossexuais foram os que mais sofreram os resultados desse processo. Foram ao mesmo tempo excluídos da condição de ter a valorização de sua identidade e vítimas de discriminação racial em função de sua cor e/ou de sua etnia, ou ainda estigmatizados por se afastarem do modelo de comportamento considerado correto.

Propomos, portanto, discutir a leitura que fazemos sobre a diversidade e as diferenças. Embora o campo teórico que discute a alteridade seja vasto, este é um ponto de partida para a compreensão das relações sociais, problematizando as diferenças. Acreditamos ser no campo do questionamento e da reflexão que poderemos avançar no respeito ao outro e no reconhecimento da diferença, e acreditamos ainda que a sala de aula é o ponto no qual essa reflexão deve culminar. Portanto, esperamos que esse debate possibilite a todos/as que fazem parte do contexto escolar novas interpretações para os conteúdos e para as relações cotidianas.


Enfim, considerando o que foi posto acima, devemos estender essa reflexão não somente no contexto escolar, mas também dentro do espaço acadêmico no que tange ao corpo docente, discente e aos técnicos administrativos. Revendo, assim, a nossa visão diante desta realidade.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A arte e a transvaloração dos valores

Meu texto é sobre um filme sátira feito pelo grupo de comédia britânico Monty Python, claramente por um viés trágico, ou afirmativo da vida, faz uma critica muito bem humorada sobre o Cristianismo, mas não somente, pois oque é “martelado” é o conceito de “estrutura religiosa de pensamento”, como observado por Nietzsche na Genealogia da Moral, essa forma de pensamento decadente vem desde a Grécia antiga com Sócrates e esta presente em toda cultura ocidental até os dias de hoje, pensamento esse que nos deixa alienados da própria existência, que é momentânea, única e efêmera. 


Basicamente a “estrutura religiosa de pensamento” é a oposição entre o mundo da vida e a metafisica, sendo que sempre se despreza a vida em pró das ideias eternas e perfeitas, seja a moda do dualismo platônico, das religiões, ou a razão universal Iluminista.

O filme é sobre um Judeu que viveu na mesma época que Jesus de Nazaré, seu nome é Bryan e inicialmente ele se envolve com um grupo revolucionário popular judeu, mas o império romano acaba o prendendo e o condena a crucificação, após fugir ele acaba conseguindo uma multidão de seguidores por acidente, mesmo que dizendo para as pessoas seguirem a vida delas, elas cada vez mais achavam que ele é era o Messias e que ele iria as salvar.



Nietzsche diz que os fracos preferem negar o mundo da vida, pois não aguentam o fato do sofrimento ser imanente a vida e de que nada tem um sentido a priori, ou uma finalidade, sendo que o universo não se importa com a existência humana.


Espinosa diz que esse pensamento que transcende a imanência não passa de mera superstição, pois ao usar a razão para fabular coisas fora do mundo, nenhum conhecimento é gerado, portanto temos que usar a razão para entender o mundo e nossos próprios afetos.

A nossa cultural acabou por privilegiar  essa maneira de pensar, onde criamos uma verdade universal e um mundo ideal e tentamos adequá-la ao mundo e as pessoas, tornando o ser humano um ser de rebanho, que sonho com um salvador ou um mundo melhor.


Tanto para Nietzsche, como para Espinosa, a dor e o sofrimento são inerentes a vida, assim como o prazer e a felicidade, os pensamentos tradicionais acabam por negar a vida, a vida com seu prazer e dor, por idealizam um mundo perfeito, , e isso acaba agravando o sofrimento, pois esse mundo perfeito não passa de ilusão e ao negar a dor, também negasse o prazer da vida, portanto ao afirmar a vida você diminui boa parte do sofrimento, porque você sabe e aceita que a dor e o sofrimento existe, não se ressente por isso, e também aproveita o prazer e a felicidade que são imanentes a vida ao máximo, aumentando sua potencia cada vez mais. 

Essa é a aceitação trágica da vida, nos termos Nietzscheanos.


No fim do filme, Bryan é capturado novamente pelos romanos e é crucificado com várias outras pessoas, filme todo é uma sátira, mas nesse final, todo tom da morte na cruz como algo muito ruim é relativizado para um tom leve

terça-feira, 19 de abril de 2016

Cultura e Igualdade - algumas reflexões

“As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e a neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. [...] Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, aptas a inculcar nos atores sociais a utilidade e a necessidade de observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano.” (Gomes, J.B. “O debate constitucional sobre as ações afirmativas”. In: Santos, R. E.) p. 21-22.

Na qualidade de refletir em conjunto com o texto de Joaquim Barbosa Gomes, podemos iniciar a congruência ideológica do debate sobre ações afirmativas em uma sociedade de ilhas de igualdade, onde existe necessariamente uma disposição natural do povo miscigenado a aceitação, de tal forma que somos todos iguais não somente perante a legislação brasileira, mas também perante a nossas frívolas ideologias, que nos tornam alienados na esperança de sermos todos semelhantes, facilitando com isto a manipulação de tantos indivíduos que consequentemente torna a mentira da igualdade racial uma verdade incontestável.

Uma vez que, tomado uma importância maior a partir da década de 1990, a discussão levando em consideração a relevância da homogeneidade constituinte da sociedade brasileira toma a cabo a pluralidade desta, valorizando por si e por outros meios o que um dia poderá ser chamado de consciência, vislumbrando desta forma, não o “cartão de visita” de Criolo nem os confins de restaurantes universitários, mas a simpática e verdadeira existência de indivíduos que constituem universos dentro de si, merecidos respeito histórico pisoteado a mais de 500 anos no país da igualdade, que, aceita no desenvolvimento de sua modernidade que seus cidadãos sejam inescrupulosamente levados à subclasse, colocando assim 90% do país a ofertar-se em um mercado controlado por meramente 10%, dos quais 53% são autodeclarados negros, pardos e indígenas.

Tomado seu primeiro contato a partir da Lei de Nacionalização do Trabalho (lei dos 2/3) datada de 1930, que visava definir uma proporcionalidade de trabalhadores brasileiros em serviço, a política de ações afirmativas no Brasil tem seus rumos que não exclusivamente as cotas universitárias como é costumeiramente imaginado por aqueles que têm seu acesso facilitado, mas sim faz parte de todo um contexto que tenta alcançar uma igualdade material neutralizando os efeitos da discriminação, iluminando o problema da diferenciação, uma vez que, em primeiro lugar aceita o fato dela- a diferença- existir desde quando negros começaram a ser catequizados, em segundo, o Brasil nunca foi um país igualitário, no mínimo, é tão dividido em substratos sociais que os valores econômicos conseguem construir-se em cima de um povo discriminado que, se muito quando eleva expoentes desse povo mono-cromado, é insuficientemente capaz de reconhecer que eles existem, grandes nomes da história, que não, a história dos colonizadores.


Por fim, retemo-nos a nem tão simples questão, aonde estão esses indivíduos de uma população multicultural? Aonde estão os universitários em um espaço dito popular?, dito feito para retornar a sociedade algum tipo de qualquer coisa que seja, aonde estão as pesquisas de gaveta e seus respectivos pesquisadores?, aonde estão os administradores vulgarmente tratados como intelectuais?, muito bem tratados como vossas senhorias... aonde estão os feitores do século XXI?, pois bem, fica essa indicação a eles: cálix-se.

Ouça a música, "W2 Proibida" do Trilha Sonora do Gueto AQUI.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Pausa conceitual: o conceito de Indústria Cultural


Essa postagem trará alguns elementos conceituais para este blog, a partir da reflexão a partir do texto “A Indústria Cultural: o Esclarecimento como Mistificação das Massas” de Theodor Adorno e Max Horkheimer, encontrado no livro Dialética do Esclarecimento.

Theodor Adorno

Max Horkheimer

Para os autores, a atual configuração social no mundo capitalista no que se refere à cultura, forma um todo conectado que visa apenas sua autoprodução e autoconsumo, fazendo com que faça parte dessa cultura, cada vez mais um processo de alienação dos seus consumidores. Corroborando com essa tese, os autores distinguem o que para eles seria uma cultura de massas, ou seja, uma cultura produzida para o consumo das massas, e afirmam a existência de uma indústria cultural, que funcionaria assim como toda e qualquer indústria (por exemplo, a automobilística) em ritmo acelerado visando apenas o lucro, em um formato predeterminado e sem preocupação com seu conteúdo.

“Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. (...) Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.” (pp. 99-100)

A racionalidade técnica, que é aquela que pensa o mundo através da ciência e do desenvolvimento tecnológico, tem apenas um objetivo, o da dominação. E essa dominação, assim como a própria racionalidade se desenvolvem pelas estruturas econômicas daqueles que dominam, fazendo com isso que a alienação atinja um novo patamar, está não será apenas aquela alienação das condições de trabalho, mas de certa forma, a alienação de si mesmo, da vida como um todo.

“Os padrões resultado originalmente das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. De fato, o que explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma.” (p. 100)

Deste modo, na Indústria Cultural, tudo aquilo que é produzido segue uma forma, um formato que deve ser funcional e se refletir em produtos altamente valorizados na vida dos indivíduos que os consomem, a vida, assim, fica submetida a indústria e o espectador nada mais é que um subproduto na cadeia de produção.

“A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho.” (p.105)

“A indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre contrário à Cultura. O denominador comum “cultura” já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração. Só a subsunção industrializada e consequente é inteiramente adequada a esse conceito de cultura. Ao subordinar da mesma maneira todos os setores da produção espiritual e este fim único – ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia – essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária que os filósofos da personalidade punham a massificação.” (p.108)

Continuando suas reflexões, os autores se depararão com as questões de como se poderia burlar essa lógica violenta imposta pela indústria cultural, e a resposta vem em tom negativo:

“Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma agrária ao capitalismo. A rebeldia realista torna-se a marca registrada de quem tem uma nova ideia a trazer à atividade industrial. A esfera pública da sociedade atual não admite qualquer acusação perceptível em cujo tom os bons entendedores não vislumbrem a proeminência sob cujo signo o revoltado com eles se reconcilia. Quanto mais incomensurável é o abismo entre o coro e os protagonistas, mais certamente haverá lugar entre estes para todo aquele que mostrar sua superioridade por uma notoriedade bem planejada.”

Assim sendo, aqueles que se rebelam contra os moldes e amarras da Indústria Cultural acabam obrigatoriamente por se incorporarem a ela, tendo em vista que o movimento de integração daquilo que se auto-opõe à indústria é permanentemente assimilado, em um jogo sem fim.

Por outro lado, com a característica das fórmulas já pré-moldadas dos produtos culturais, para o espectador, por consequência, aparecem sempre as mesmas imagens da vida cotidiana, que são reproduzidas nas telas, nas rádios e nas revistas, assim vários sentimentos são substituídos pela aparência destes, por aquilo que é visto e sentido através da própria industria.

“Mas o que é novo é que os elementos irreconciliáveis da cultura, da arte e da distração se reduzem mediante sua subordinação ao fim à única fórmula falsa: a totalidade da indústria cultural. Ela consiste na repetição” (p.112)

“A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a sequencia automatizada de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão.” (p.113)

Assim mais um elemento fundamental surge com relação à Indústria Cultural, com seu fim último já estabelecido, fechando assim seu ciclo de produção: a criação de mercadorias que levam a não separação entre aquilo que está estabelecido pela indústria e aquilo que é necessário a vida do espectador, assim o passo final da alienação é dado em um único tom.

“Conforme o aspecto determinante em cada caso, a ideologia dá ênfase ao planejamento ou ao acaso, à técnica ou a à vida, à civilização ou à natureza. Enquanto empregados, eles são lembrados da organização racional e exortados a se inserir nela com bom-senso. Enquanto clientes, verão o cinema e a imprensa demonstrar-lhes, com base em acontecimentos da vida privada das pessoas, a liberdade da escolha, que é o encanto do incompreendido. Objetos é que continuarão a ser em ambos os casos.” (p.121)


(Nesta postagem foi utilizada a versão do texto publicada em Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos, Jorge Zahar Ed., 1985.)


domingo, 17 de abril de 2016

“Autocracia cultural”: A Onda, Hobbes e a resistência

É possível mensurar o valor de uma cultura? É palpável esse exame feito hoje em dia sobre culturas, onde umas são mais aceitas e investidas, enquanto outras são escondidas e desvalidadas cada vez mais? Proponho, neste post, examinarmos alguns aspectos da ação de 'julgar' uma obra de arte ou uma cultura, segundo valores morais, como bom ou ruim, bonito ou feio, caro ou barato e assim por diante.


Começo minha argumentação contextualizando brevemente sobre como a arte pode ser vista de diferentes modos. Para uma burguesia, ela entretê e distrai. Para uma pessoa que mora na favela, ela carrega seu choros, sua revolta e sua esperança. Para uma pessoa que está do outro lado do mundo, minha poesia gera uma interpretação, para você, gerara outra. O que quero dizer, é que a homogeneidade de interpretações, traz consigo a ideia da subjetividade da produção e da interpretação. Ora, o cuidado e suavidade no esculpimento das esculturas de Giovanni Strazza é claríssima em sua obra “The Veiled Virgin”, mas só isso basta para eu atribuir um valor (e quando digo valor, entende-se por financeiro e moral) e, mediante a esse valor, definir isso como arte? O popular, nesse caso, estaria sendo uma normatização (e não necessariamente da maioria).

The Veiled Virgin”

No filme 'A onda', dirigido por Dennins Gansel, o conceito de autocracia é trabalhado por um professor, durante uma semana em suas aulas. No começo há um grande estranhamento da maioria dos alunos em relação as ordens do professor (que simula uma autocracia, sendo ele a figura simbólica), mas, ao decorrer da semana, os alunos começam a se engajar cada vez mais na trama proposta. Não trabalharei com a história do filme propriamente dita, porém, ele nos dá margem para interpretações acerca de controle, imposição e união que serão bem interessantes.

O poder ilimitado que é construído na autocracia, permite a manutenção de uma massa; com o tempo, imposições acerca de vestimenta, postura e discurso começam a surgir, visando uma uniformidade dos alunos dentro do grupo. A união em busca da unidade se torna um amparo em meio aos problemas dos jovens, e a imposição de valores morais, que são a base constituinte de um julgamento, começam a serem arquitetadas no filme. Ademais, a ideia de pertencer a um movimento, ou seja, uma identidade, precípua o engajamento dos jovens para com o movimento. O que se observa ao decorrer do filme, é o subjetivo sendo cada vez mais suprimido por uma imposição de pensamento dizendo o que há ou não há de ser feito.

Haja feita esse breve levantamento, abre-se um campo de comparação muito forte entra a teoria Hobbesiana e o conteúdo do filme. Basicamente, Hobbes utiliza dois conceitos, que é o de ' estado de natureza ' e ' estado civil ', para arquitetar os possíveis “rumos” que nossas decisões podem desencadear. Vivemos naturalmente no primeiro estado (de natureza), que para ele representa perigo ao homem, visto que, o homem não possui nenhum limitação sobre si e é livre para fazer o que bem entender, pois é amoral. A solução, como preservação da integridade das pessoas é a instauração de uma figura simbólica para fazer exercício do poder e manutenção da sociedade. O soberano, como intitula Hobbes, é o único homem que tem liberdade sem questionamento e legisla para o bem geral; o contrato social é o meio que faz a transição entre o estado de natureza e o estado civil, onde algumas mudanças começam a surgir, como a utilização de documentos ( leis escritas ) ao invés estritamente da palavra, a definição de juízos morais segundo o Soberano, dentre outras coisas ligadas a unificação geral mediada por um poder ilimitado.

Mas onde isso se encaixa na questão cultural? Se tentarmos fazer um paralelo entre a ideia imposta pela autocracia e a exclusão de cultural, veremos aspectos muito semelhantes entre ambos. Aspectos estéticos e ideológicos são construtos feitos a partir d'uma outra ideia; logo, dar valor ( novamente financeiro e moral ) para a cultura, é usar a sua realidade, os seus valores, a sua vivência e afins, para hierarquizar a cultura como um todo.

Concluo, portanto, que a arte e a “cultura popular” sempre vão ter o seu valor, como forma de expressão dentro de um contexto. Porém, a partir do momento em que há um dialogo entre os contextos ,para definir o que é melhor, o que é mais caro e assim por diante, fica uma ideia muito vaga, pois o que é arte e a cultura senão criação, identidade e interpretação? Logo, seu começo, seu meio e seu fim, sempre serão diferentes; a diversidade do conteúdo, da forma, da imaginação, da inspiração e de outras formas de se alcançar a expressividade, sempre serão válidas. Discordância é importante e possui o seu momento, conquanto que haja respeito pela criação e pela diferença do outro, que apesar de outro, é mais um dentre um todo, assim como todos nós.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O dever a verdade é útil?



A arte é a maneira mais eficaz de se tocar as pessoas, isso se mostra de maneira tão intensa na história humana que vemos isso desde sempre, mostrando que sabemos bem o poder dela de passar ideais. Observamos em quase, se não todas, mitologias do mundo ela sendo usada como ferramenta, seja nos poemas de Homero com os deuses gregos, seja nas parábolas contadas por Jesus e registradas por seus apóstolos, porem vemos isso também na filosofia às vezes, como nos diálogos platônicos, como também nas linhas poético narrativas de “Assim falava Zaratustra” de Nietzsche, passando é claro pelas “Confissões” de Santo Agostinho, considerado também uma autobiografia. 

Fica claro notar que a arte leva consigo, ao menos uma dessas coisas, filosofias, ideias, valores ou sentimentos, escolho aqui para esse texto, uma obra literária do século XX, precisamente a HQ “Watchman” escrita por Alan Moore, ainda na década de 1980, que além de representar os paradigmas e medos da época, em um mundo assombrado pela a ameaça da guerra fria e seu potencial de aniquilar a humanidade, reflete também questões filosóficas que acompanham o ser humano desde seus primórdios, irei me deter aqui em, trabalhar sobre uma questão levantada no fim da estória, a questão do valor da verdade, da natureza da moral, pondo em questão os próprios fundamentos do pensamento ético e suas contradições. 


Um dos maiores filósofos da história e para muitos o maior representante e ápice da racionalidade na filosofia moderna é Immanuel Kant, nascido no século XVIII na Prússia. Produzindo obras extremamente relevantes nas grandes áreas da filosofia, sendo conhecimento, ética e estética. Notemos aqui a sua concepção de moral. 

Para Kant, o valor moral esta na intencionalidade do sujeito, pois o sujeito não tem controle sobre as consequências de suas ações no mundo. 
Além de que a única coisa que é essencialmente boa é a “boa vontade”, sendo ela, a base do dever, esse o sendo o fundamento da moral, dever que é o que mostra o correto ou justo, pois o dever é manifestação da razão, sendo uma lei imposta por você a si mesmo.
Prosseguindo, Kant ainda cria um método racional para que em qualquer situação possamos saber agir de acordo com o dever e a razão universal e esse é o “Imperativo Categórico”, podendo ser ilustrado nesse aforismo: “Aja apenas de acordo como se sua ação fosse se tornar uma lei universal, tendo as pessoas como fim nelas mesmo.” 
O novo homem, Iluminista, autônomo em sua maioridade intelectual, ira viver em uma sociedade regida pela razão e por suas leis, onde todos atingiram a maioridade intelectual, sendo assim, o Imperativo Categórico de Kant, segundo ele próprio, garantiria a paz perpetua.



Por outro lado temos o filosofo Inglês, John Stuart Mill, que com sua teoria ética, acaba por levantar problemas práticos da moral Idealista de Kant. A doutrina inglesa, conhecida como Utilitarista, visa solucionar os problemas políticos e éticos, a fim de aprimorar cada vez mais o liberalismo Inglês e sua sociedade.

Mill parte de outra premissa, a de que a única coisa que é essencialmente boa é a “Felicidade”, entendendo-a como prazer e ausência de dor, portanto ele segue sua teoria com a Felicidade como base.
Seu sistema, simplificadamente, definiu-se assim: “Quanto mais felicidade for produzida, para o maior numero de pessoas possíveis, mais corretas será a ação”.
Conclusão imediata que tiramos ao ler essa máxima é que, não importa em nada o que você faz, mas sim, o que importa, são as consequências de sua ação.



Vemos a ética consequencialista de Mill, confrontar diretamente o pensamento de Kant, que parte do dever. Em “Watchman” é exatamente esse confronto que ocorrer no último arco da estória e que tratarei agora a discussão.




A partir de agora [SPOILIER] da HQ/Filme. (Leia ou assista-o, depois volte)


(o contexto é guerra fria, anos 80, o EUA tem um semideus criado por acidente, seu nome é Doutor Manhattan, porem tanto EUA como URSS tem poder nuclear para acabar com a humanidade)

A personagem Ozymandias, o homem mais inteligente do mundo, consegue concluir seu plano de criar um monstro com células e tecnologia criadas pelo Doutor Manhattan para destruir New York (ou como no filme, uma bomba feita com células e tecnologia criada pelo Doutor Manhattan, explode New York e Moscou), ele a destrói, matando milhões de pessoas. Rorschach, Coruja, Espectral não conseguem o impedir, o mundo pensa que o responsável pela tragédia é o Doutor Manhattan.



Ozymandias luta e vence Rorschach, Coruja e a Espectral, enquanto argumenta contra eles e Manhattan o porquê ele esta certo e o porquê ninguém deve contar a verdade ao mundo, ele argumenta que agora, com um inimigo comum, Doutor Manhattan, a humanidade pela primeira vez na historia ficará em paz, pois imediatamente EUA e URSS se uniram a fim de proteger-se do deus poderoso e destruidor Doutor Manhattan, essa mentira ira promover o fim das guerras em nome da sobrevivência da espécie. Ozymandias diz que matou milhões de pessoas, mas ao fazer isso, também salvou bilhões de pessoas e evitou que a humanidade acabasse numa guerra nuclear. Rorschach considera que o certo é dizer a verdade, e que uma paz fundamentada na mentira não é digna, porem Manhattan esta convencido de que o melhor, naquele momento, é manter a mentira, então Rorschach diz que não vai ceder nem diante de deus ou do fim do mundo e se quisesse para-lo teriam que mata-lo, e então, Manhattan o faz, mata Rorschach, reduzindo-o a uma possa de sangue. 



Acho que vocês já perceberam quem é quem nessa estória, o idealismo de Rorschach e o pragmatismo de Ozymandias, mas para fechar vou levantar algumas questões para sua reflexão:


Ozymandias esta certo ou errado?

Rorschach estava certo ou errado em contar a verdade ao mundo?

Você morreria em nome da verdade como Rorschach?

Os fins justificam os meios?

O valor da ação esta nela mesma ou nos seus efeitos?

Kant e Mill vão te ajudar a pensar, reflitam, criem sua visão sobre e é isso, um abraço.


                                                                                                     Postado por: Lucas F. Ramos

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Maus, contando uma história através de quadrinhos

Introdução:
Esta postagem, visa fazer uma analise pormenorizada da obra em quadrinhos Maus, tendo em vista as possibilidades narrativas no “contar uma história” pelo meio das Histórias em Quadrinhos, como ideia de mostrar as capacidades representativas de uma forma não usual de história e de manifestação artístico-cultural. Boa leitura.

 Fig.01

Arthur Spiegelman (Fig.01) nasceu em 15 de fevereiro de 1948 em Estocolmo, Suécia, e ainda bebê imigrou para os Estados Unidos com sua família. Estudou desenho durante o colégio, profissionalizando-se com dezesseis anos. Ingressou no curso de filosofia no Harpur College, indo contra a opinião de seus pais que o queriam dentista, e em 1968 ingressou no movimento de revistas underground (underground comix movement). Desenhando e escrevendo para várias revistas sobre diversos pseudônimos, Spiegelman tem como principais influencias Robert Clumb, S. Clay Wilson e Justin Green. Em 1980, junto de Françoise Mouly, lança a revista Raw (Fig.02, Raw número 1) responsável pelo lançamento de vários artistas importantes e até então desconhecidos, e acima de tudo, pelo seu mais conhecido trabalho, Maus, entre 1980 e 1986 (primeira parte, lançado posteriormente em volume único: Maus A Survivor’s Tale I: My Father Bleeds History) e 1991 (segunda parte, sob o título: Maus A Survivor’s Tale II: And Here My Troubles Becan) – figuras 03 e 04.

                                             Fig.02

  Fig.03            Fig.04

Em 1992, Art recebe o Prêmio Pullitzer de Jornalismo pela obra completa de Maus. Continua a escrever e desenhar, voltando novamente a destaque com seu trabalho sobre o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA, chamado In the Shadow of No Towers.
Mas como um autor de revistas em quadrinhos poderia ganhar um dos maiores prêmios do jornalismo mundial? Essa talvez seja uma pergunta de uma pessoa que se deixa levar pela aparente ingenuidade de Maus. Afinal, desenhos com aspecto sujo em preto-e-branco, um enquadramento simplista, personagens antropozoomórficas, aliados ao fato de ser publicada em um formato repleto de preconceitos, as HQs, são no mínimo, bons motivos para essa estranheza. Porém não é difícil de rebater cada um desses falsos argumentos. Primeiro: toda a estética encontrada em Maus é decorrente do próprio movimento em que ela está inserida, assim como do estilo de seu autor. Tanto a aparência suja, assim como a ausência de cores, fazem com que haja um apelo maior para a história que está sendo narrada. Está é uma característica comum em HQs com caráter mais documental, e Maus não foge a regra. Ao observar detalhadamente um quadrinho à parte, podem-se perceber muitos detalhes que são, muitas vezes, enriquecidos se não fossem tais técnicas, e sua carga dramática é, por conseguinte, elevada, como mostra o exemplo a seguir (Fig.05):

 Fig.05

Tradução: “De noite tinha que ir na banheiro embaixo. Estava sempre cheio, corredor inteiro, com mortos empilhados lá. Não dava pra passar...”

A sujeira domina o ambiente, o contraste entre o preto e o branco é grande, não é necessário um close no rosto da personagem principal para ver seu abatimento, assim como não é necessário maior explicação para se perceber que os corpos no chão estão mortos. Eis uma característica fundamental nas HQs, não é necessário dizer mais do que já é mostrado no desenho.
Segundo: a escolha por um enquadramento simples não quer dizer que a história seja prejudicada por isso. Muitas vezes este recurso é utilizado para fortalecer partes da narrativa, como foi dito anteriormente, não é preciso dizer coisas que já estão explicitadas nos desenhos, porém não mostrar o que está sendo dito também é um recurso recorrente nos quadrinhos, como se vê na imagem abaixo (Fig.06):

Fig.06

Tradução: Atenção para as falas em off (ou seja que não são balões de fala): “Um sujeito falou de primo que morar no Alemanha...ele teve que vender seu negócio para um alemão e fugir da país. Sem nada de dinheiro. Lá estar muito difícil para os judeus. Terrível! Outro rapaz falou de um parente em Brandenberg. A polícia foi no seu casa e ninguém mais ouviu nada dele. Eram muitos histórias assim. Sinagogas queimados, judeus espancados sem razão, cidades expulsando judeus. Uma história pior que a outra.”

Prestando-se maior atenção ao segundo, terceiro, quarto e quinto quadrinhos notá-se como a imagem que é projetada a frente da suástica muda conforme o que esta sendo narrado. No terceiro, o sorriso no rosto dos soldados nazistas ganha significado com a placa que os judeus carregam escrito “Eu sou um judeu sujo”, enquanto o narrador ressalta: “Terrível!”. Da mesma maneira, a tranqüilidade aparente no quinto quadrinho é confirmada com a faixa estampando “Cidade sem judeus”. Portanto, a narrativa dos quadrinhos é completamente dependente da relação com que o autor mescla a imagem com a palavra, tornando-as uma coisa só, e é a maestria com que este autor faz essa mistura que dá um maior significado a sua obra.
Terceiro: a escolha pela representação antropozoomórfica das personagens não foi à toa. A palavra “maus” em alemão significa rato, e a ironia embutida nesta representação remete a propaganda nazista que comparava os judeus a pestes da humanidade. Por tanto, em uma sequencia lógica, os alemães são gatos, e assim Spiegelman vai representando cada personagem de sua obra. Há também uma outra interpretação para este antropozoomorfismo de Maus, que por sua vez, não exclui a intenção anterior: a escolha por essa representação seria também uma ironia com os famosos personagens Disney, e seu principal ícone, o rato Mickey Mouse condenado pela propaganda nazista como é mostrado em um trecho da epígrafe no segundo livro de Maus, de um artigo de jornal da Pomerânia em meados da década de 1930: “Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia [...] As emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal [...] Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus! Abaixo Mickey Mouse! Usem a Suástica!”. Além disso, esta forma de representação não torna em nenhum momento a obra infantil, ao contrário, reforça muitas vezes a crueldade das cenas, mostrando cenas em que “ratos-pessoas” estão em situações semelhantes à “ratos-animais”.
Estes três argumentos já dariam à Maus um grande motivo para a sua importância, porém, há de se destacar que o principal fator desta obra é, sem duvida alguma, a sua história. Deve-se ressaltar que existem três narrativas simultâneas na obra: a primeira é a conversa constante entre Art e seu pai durante a escrita da obra, a segunda é a narrativa de Vladek sobre o seu cativeiro na guerra, e a terceira, um tanto quanto mais sutil, é a de Art conversando com o leitor durante a composição desta, este exercício metalingüístico aparece com maior freqüência no segundo livro, portanto é necessária a analise de cada uma destas narrativas para se poder ter uma visão geral de Maus:

1
Na primeira narrativa, ou seja, nas várias conversas entre Art e seu pai, muitos aspectos interessantes são mostrados. È nesta narrativa que a relação entre pai e filho é colocada em primeiro plano, desde os conflitos de geração até as manias geradas pela guerra em Vladek. Este é mostrado como uma pessoa normal, não há mitificações quanto a sua pessoa, Art o descreve realisticamente, e não omite alguns defeitos de seu pai como a avareza, o preconceito e o egocentrismo, e são alguns dos conflitos que aparecem entre os dois que ajudam a compor as figuras humanas das personagens. Há aqui uma clara impressão do filho que precisa ouvir as histórias do pai, mesmo que isso signifique aturar seus trejeitos e reclamações, e do pai que quer contar as suas histórias a seu filho, permeando isso, tem-se a cruel distãncia que os separa, um tentando conhecer e se adaptar ao jeito do outro, uma distância criada em anos de convivência não tão presentes como se era de esperar. Durante está parte da narrativa que é mostrado como Art colheu os dados biográficos da história, não deixa de mostrar, inclusive, detalhes da criação, muitas vezes surgidas nas conversas com seu pai, como se vê na imagem abaixo (Fig.07):

Fig.07

Aqui, Vladek esboça ao filho a planta de um bunker construído para oferecer esconderijo quando a casa fosse inspecionada pelos soldados nazistas, este enriquecimento da obra através de detalhes contribui muito para a narrativa e para o conhecimento como um todo sobre a experiência vivida por estas pessoas na guerra, mas este assunto será mais bem explorado no próximo item.

2
“O medo de esquecer: a principal obsessão de todos aqueles que passaram pelo universo dos condenados. O inimigo contava com a descrença e o esquecimento das pessoas. Como frustrar essa trama? E se a memória ficasse oca, sem substância, o que aconteceria com tudo que havíamos acumulado pelo caminho?” – assim escreveu o jornalista judeu Elie Wiesel em seu texto “Por que eu escrevo?”. Wiesel também passou por campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, e talvez em poucas palavras tenha definido tão bem o grande medo que sua nação sofre, o medo do esquecimento. Vladek Spiegelman com certeza também sofre do mesmo mal. A oportunidade, portanto, de contar sua história para o filho é única, notá-se com a espontaneidade com a qual este tem em contar suas histórias para o filho,  mesmo com uma saúde debilitada e problemas conjugais, isto, além de significar passar à diante sua história, significa a aproximação com o filho.
Vladek conta sua história desde antes da guerra, a presença do anti-semitismo vai sendo inserida aos poucos na narrativa, como pano de fundo para as suas histórias, Maus é, acima de tudo sua história e não uma história sobre a guerra. É, de certa forma, sua biografia, onde inevitavelmente Auschwitz está presente. Assim como as palavras de Wiesel: “(...) Após Auschwitz tudo nos leva de volta a Auschwitz”, os desenhos de Art mostram de maneira absurdamente verossímil, apesar da forma antropozoomórfica das personagens, os horrores do holocausto, como é visto no quadrinhos abaixo:                                                                                                                                Fig.08

Então Maus acaba por contar de maneira diferente um relato importante sobre um evento importantíssimo da história contemporânea, um relato particular, mas cheio de detalhes surpreendentes sobre tal episódio. Pensar como isto influenciou Art durante sua produção é muito importante, assunto para a última parte.

3
           Fig 09

É evidente como Maus influenciou a obra de Art Spiegelman, basta ver algumas de suas obras posteriores, como seu Auto-retrato (Figura 09) e uma pequena tira, onde Maus aparece apenas no último quadrinho, aparentemente sem explicação, a não ser sua importância para o autor (Figura 10). Porém, as dificuldades na elaboração da obra nunca foram escondidas por ele. Como mencionado anteriormente, durante a HQ inteira há metalinguagem, onde o autor conversa e expõe ao leitor suas dificuldades na composição da obra. Desde as dificuldades de relacionamento com o pai, até a falta que este faz quando morre em 18 de agosto de 1982, mesmo sem isso estar explícito no quadrinho, está nas páginas.
                                                                                                                                Fig.10

Talvez o momento que mais está metalinguagem esteja explicita é no segundo capitulo do segundo livro, titulado “Auschwitz (o tempo voa)”, onde Art expõe sua depressão após a morte do pai e o, irremediável, sucesso da primeira parte de Maus, e mostra nos quadrinhos suas consultas com o psicólogo, o judeu tcheco Pavel, também sobrevivente de Auschwitz.. São momentos como este que enriquecem imensamente a obra, pois mostra como foi para o autor a composição em si do que foi feito.
É portanto de se destacar a obra de Art Spiegelman tendo em vista o todo, ela cumpri o difícil papel de contar a história de uma tragédia sem cair em clichês. Falar sobre o holocausto e sobre a Segunda Guerra em geral é um assunto complicado principalmente para quem viveu o fato, como Wiesel já indagou:

Nós todos sabíamos que jamais, jamais poderíamos dizer  que tinha que ser dito, que jamais poderíamos expressar em uma escala absoluta, em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência de loucura. A caminhada através da noite chamejante, o silêncio antes e depois da seleção, o rezar monótono dos condenados, o Kaddish dos moribundos, o terror e a fome dos doentes, a vergonha e o sofrimento, os olhos apavorados, os olhos dementes. Pensei que nunca seria capaz de falar deles. Todas as palavras pareciam inadequadas, gastas, tolas, sem vida, e eu as queria ardentes. Onde iria eu descobrir um vocabulário novo, uma linguagem primeva? A linguagem da noite não era humana; era primitiva, quase animal – gritos roucos, berros, gemidos abafados, uivos selvagens, o som de espancamentos... Um sádico batendo loucamente, um corpo caindo; um oficial ergue o braço e uma comunidade inteira caminha em direção a uma cova comum; um soldado meneia os ombros e mil famílias são dilaceradas, para serem reunidas apenas pela morte. Essa é a linguagem do campo de concentração. Negava qualquer outra linguagem e tomava seu lugar. Em vez de um elo, tornou-se um muro. Seria possível transpô-lo? Poderia o leitor ser conduzido ao outro lado? Eu sabia que a resposta era negativa, e no entanto eu também sabia que o “não” teria de se tornar “sim”. Era o desejo, a última vontade dos mortos. Seria preciso quebrar a casca envolvendo a escura verdade, dar-lhe um nome. Seria preciso forçar o homem a olhar.

E é com estas palavras que se encerra esta postagem, afinal, não se pode negar esta forma “primeva” de discurso, seja ela uma História em Quadrinhos ou não, e com isso, entendê-la, dentro de seus limites, mas principalmente, a partir de suas possibilidades, uma forma narrativa e uma expressão cultural.