sexta-feira, 1 de abril de 2016

Maus, contando uma história através de quadrinhos

Introdução:
Esta postagem, visa fazer uma analise pormenorizada da obra em quadrinhos Maus, tendo em vista as possibilidades narrativas no “contar uma história” pelo meio das Histórias em Quadrinhos, como ideia de mostrar as capacidades representativas de uma forma não usual de história e de manifestação artístico-cultural. Boa leitura.

 Fig.01

Arthur Spiegelman (Fig.01) nasceu em 15 de fevereiro de 1948 em Estocolmo, Suécia, e ainda bebê imigrou para os Estados Unidos com sua família. Estudou desenho durante o colégio, profissionalizando-se com dezesseis anos. Ingressou no curso de filosofia no Harpur College, indo contra a opinião de seus pais que o queriam dentista, e em 1968 ingressou no movimento de revistas underground (underground comix movement). Desenhando e escrevendo para várias revistas sobre diversos pseudônimos, Spiegelman tem como principais influencias Robert Clumb, S. Clay Wilson e Justin Green. Em 1980, junto de Françoise Mouly, lança a revista Raw (Fig.02, Raw número 1) responsável pelo lançamento de vários artistas importantes e até então desconhecidos, e acima de tudo, pelo seu mais conhecido trabalho, Maus, entre 1980 e 1986 (primeira parte, lançado posteriormente em volume único: Maus A Survivor’s Tale I: My Father Bleeds History) e 1991 (segunda parte, sob o título: Maus A Survivor’s Tale II: And Here My Troubles Becan) – figuras 03 e 04.

                                             Fig.02

  Fig.03            Fig.04

Em 1992, Art recebe o Prêmio Pullitzer de Jornalismo pela obra completa de Maus. Continua a escrever e desenhar, voltando novamente a destaque com seu trabalho sobre o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 nos EUA, chamado In the Shadow of No Towers.
Mas como um autor de revistas em quadrinhos poderia ganhar um dos maiores prêmios do jornalismo mundial? Essa talvez seja uma pergunta de uma pessoa que se deixa levar pela aparente ingenuidade de Maus. Afinal, desenhos com aspecto sujo em preto-e-branco, um enquadramento simplista, personagens antropozoomórficas, aliados ao fato de ser publicada em um formato repleto de preconceitos, as HQs, são no mínimo, bons motivos para essa estranheza. Porém não é difícil de rebater cada um desses falsos argumentos. Primeiro: toda a estética encontrada em Maus é decorrente do próprio movimento em que ela está inserida, assim como do estilo de seu autor. Tanto a aparência suja, assim como a ausência de cores, fazem com que haja um apelo maior para a história que está sendo narrada. Está é uma característica comum em HQs com caráter mais documental, e Maus não foge a regra. Ao observar detalhadamente um quadrinho à parte, podem-se perceber muitos detalhes que são, muitas vezes, enriquecidos se não fossem tais técnicas, e sua carga dramática é, por conseguinte, elevada, como mostra o exemplo a seguir (Fig.05):

 Fig.05

Tradução: “De noite tinha que ir na banheiro embaixo. Estava sempre cheio, corredor inteiro, com mortos empilhados lá. Não dava pra passar...”

A sujeira domina o ambiente, o contraste entre o preto e o branco é grande, não é necessário um close no rosto da personagem principal para ver seu abatimento, assim como não é necessário maior explicação para se perceber que os corpos no chão estão mortos. Eis uma característica fundamental nas HQs, não é necessário dizer mais do que já é mostrado no desenho.
Segundo: a escolha por um enquadramento simples não quer dizer que a história seja prejudicada por isso. Muitas vezes este recurso é utilizado para fortalecer partes da narrativa, como foi dito anteriormente, não é preciso dizer coisas que já estão explicitadas nos desenhos, porém não mostrar o que está sendo dito também é um recurso recorrente nos quadrinhos, como se vê na imagem abaixo (Fig.06):

Fig.06

Tradução: Atenção para as falas em off (ou seja que não são balões de fala): “Um sujeito falou de primo que morar no Alemanha...ele teve que vender seu negócio para um alemão e fugir da país. Sem nada de dinheiro. Lá estar muito difícil para os judeus. Terrível! Outro rapaz falou de um parente em Brandenberg. A polícia foi no seu casa e ninguém mais ouviu nada dele. Eram muitos histórias assim. Sinagogas queimados, judeus espancados sem razão, cidades expulsando judeus. Uma história pior que a outra.”

Prestando-se maior atenção ao segundo, terceiro, quarto e quinto quadrinhos notá-se como a imagem que é projetada a frente da suástica muda conforme o que esta sendo narrado. No terceiro, o sorriso no rosto dos soldados nazistas ganha significado com a placa que os judeus carregam escrito “Eu sou um judeu sujo”, enquanto o narrador ressalta: “Terrível!”. Da mesma maneira, a tranqüilidade aparente no quinto quadrinho é confirmada com a faixa estampando “Cidade sem judeus”. Portanto, a narrativa dos quadrinhos é completamente dependente da relação com que o autor mescla a imagem com a palavra, tornando-as uma coisa só, e é a maestria com que este autor faz essa mistura que dá um maior significado a sua obra.
Terceiro: a escolha pela representação antropozoomórfica das personagens não foi à toa. A palavra “maus” em alemão significa rato, e a ironia embutida nesta representação remete a propaganda nazista que comparava os judeus a pestes da humanidade. Por tanto, em uma sequencia lógica, os alemães são gatos, e assim Spiegelman vai representando cada personagem de sua obra. Há também uma outra interpretação para este antropozoomorfismo de Maus, que por sua vez, não exclui a intenção anterior: a escolha por essa representação seria também uma ironia com os famosos personagens Disney, e seu principal ícone, o rato Mickey Mouse condenado pela propaganda nazista como é mostrado em um trecho da epígrafe no segundo livro de Maus, de um artigo de jornal da Pomerânia em meados da década de 1930: “Mickey Mouse é o ideal mais lamentável de que se tem notícia [...] As emoções sadias mostram a todo rapaz independente, todo jovem honrado, que um ser imundo e pestilento, o maior portador de bactérias do reino animal, não pode ser o tipo ideal de animal [...] Abaixo a brutalização do povo propagada pelos judeus! Abaixo Mickey Mouse! Usem a Suástica!”. Além disso, esta forma de representação não torna em nenhum momento a obra infantil, ao contrário, reforça muitas vezes a crueldade das cenas, mostrando cenas em que “ratos-pessoas” estão em situações semelhantes à “ratos-animais”.
Estes três argumentos já dariam à Maus um grande motivo para a sua importância, porém, há de se destacar que o principal fator desta obra é, sem duvida alguma, a sua história. Deve-se ressaltar que existem três narrativas simultâneas na obra: a primeira é a conversa constante entre Art e seu pai durante a escrita da obra, a segunda é a narrativa de Vladek sobre o seu cativeiro na guerra, e a terceira, um tanto quanto mais sutil, é a de Art conversando com o leitor durante a composição desta, este exercício metalingüístico aparece com maior freqüência no segundo livro, portanto é necessária a analise de cada uma destas narrativas para se poder ter uma visão geral de Maus:

1
Na primeira narrativa, ou seja, nas várias conversas entre Art e seu pai, muitos aspectos interessantes são mostrados. È nesta narrativa que a relação entre pai e filho é colocada em primeiro plano, desde os conflitos de geração até as manias geradas pela guerra em Vladek. Este é mostrado como uma pessoa normal, não há mitificações quanto a sua pessoa, Art o descreve realisticamente, e não omite alguns defeitos de seu pai como a avareza, o preconceito e o egocentrismo, e são alguns dos conflitos que aparecem entre os dois que ajudam a compor as figuras humanas das personagens. Há aqui uma clara impressão do filho que precisa ouvir as histórias do pai, mesmo que isso signifique aturar seus trejeitos e reclamações, e do pai que quer contar as suas histórias a seu filho, permeando isso, tem-se a cruel distãncia que os separa, um tentando conhecer e se adaptar ao jeito do outro, uma distância criada em anos de convivência não tão presentes como se era de esperar. Durante está parte da narrativa que é mostrado como Art colheu os dados biográficos da história, não deixa de mostrar, inclusive, detalhes da criação, muitas vezes surgidas nas conversas com seu pai, como se vê na imagem abaixo (Fig.07):

Fig.07

Aqui, Vladek esboça ao filho a planta de um bunker construído para oferecer esconderijo quando a casa fosse inspecionada pelos soldados nazistas, este enriquecimento da obra através de detalhes contribui muito para a narrativa e para o conhecimento como um todo sobre a experiência vivida por estas pessoas na guerra, mas este assunto será mais bem explorado no próximo item.

2
“O medo de esquecer: a principal obsessão de todos aqueles que passaram pelo universo dos condenados. O inimigo contava com a descrença e o esquecimento das pessoas. Como frustrar essa trama? E se a memória ficasse oca, sem substância, o que aconteceria com tudo que havíamos acumulado pelo caminho?” – assim escreveu o jornalista judeu Elie Wiesel em seu texto “Por que eu escrevo?”. Wiesel também passou por campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, e talvez em poucas palavras tenha definido tão bem o grande medo que sua nação sofre, o medo do esquecimento. Vladek Spiegelman com certeza também sofre do mesmo mal. A oportunidade, portanto, de contar sua história para o filho é única, notá-se com a espontaneidade com a qual este tem em contar suas histórias para o filho,  mesmo com uma saúde debilitada e problemas conjugais, isto, além de significar passar à diante sua história, significa a aproximação com o filho.
Vladek conta sua história desde antes da guerra, a presença do anti-semitismo vai sendo inserida aos poucos na narrativa, como pano de fundo para as suas histórias, Maus é, acima de tudo sua história e não uma história sobre a guerra. É, de certa forma, sua biografia, onde inevitavelmente Auschwitz está presente. Assim como as palavras de Wiesel: “(...) Após Auschwitz tudo nos leva de volta a Auschwitz”, os desenhos de Art mostram de maneira absurdamente verossímil, apesar da forma antropozoomórfica das personagens, os horrores do holocausto, como é visto no quadrinhos abaixo:                                                                                                                                Fig.08

Então Maus acaba por contar de maneira diferente um relato importante sobre um evento importantíssimo da história contemporânea, um relato particular, mas cheio de detalhes surpreendentes sobre tal episódio. Pensar como isto influenciou Art durante sua produção é muito importante, assunto para a última parte.

3
           Fig 09

É evidente como Maus influenciou a obra de Art Spiegelman, basta ver algumas de suas obras posteriores, como seu Auto-retrato (Figura 09) e uma pequena tira, onde Maus aparece apenas no último quadrinho, aparentemente sem explicação, a não ser sua importância para o autor (Figura 10). Porém, as dificuldades na elaboração da obra nunca foram escondidas por ele. Como mencionado anteriormente, durante a HQ inteira há metalinguagem, onde o autor conversa e expõe ao leitor suas dificuldades na composição da obra. Desde as dificuldades de relacionamento com o pai, até a falta que este faz quando morre em 18 de agosto de 1982, mesmo sem isso estar explícito no quadrinho, está nas páginas.
                                                                                                                                Fig.10

Talvez o momento que mais está metalinguagem esteja explicita é no segundo capitulo do segundo livro, titulado “Auschwitz (o tempo voa)”, onde Art expõe sua depressão após a morte do pai e o, irremediável, sucesso da primeira parte de Maus, e mostra nos quadrinhos suas consultas com o psicólogo, o judeu tcheco Pavel, também sobrevivente de Auschwitz.. São momentos como este que enriquecem imensamente a obra, pois mostra como foi para o autor a composição em si do que foi feito.
É portanto de se destacar a obra de Art Spiegelman tendo em vista o todo, ela cumpri o difícil papel de contar a história de uma tragédia sem cair em clichês. Falar sobre o holocausto e sobre a Segunda Guerra em geral é um assunto complicado principalmente para quem viveu o fato, como Wiesel já indagou:

Nós todos sabíamos que jamais, jamais poderíamos dizer  que tinha que ser dito, que jamais poderíamos expressar em uma escala absoluta, em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência de loucura. A caminhada através da noite chamejante, o silêncio antes e depois da seleção, o rezar monótono dos condenados, o Kaddish dos moribundos, o terror e a fome dos doentes, a vergonha e o sofrimento, os olhos apavorados, os olhos dementes. Pensei que nunca seria capaz de falar deles. Todas as palavras pareciam inadequadas, gastas, tolas, sem vida, e eu as queria ardentes. Onde iria eu descobrir um vocabulário novo, uma linguagem primeva? A linguagem da noite não era humana; era primitiva, quase animal – gritos roucos, berros, gemidos abafados, uivos selvagens, o som de espancamentos... Um sádico batendo loucamente, um corpo caindo; um oficial ergue o braço e uma comunidade inteira caminha em direção a uma cova comum; um soldado meneia os ombros e mil famílias são dilaceradas, para serem reunidas apenas pela morte. Essa é a linguagem do campo de concentração. Negava qualquer outra linguagem e tomava seu lugar. Em vez de um elo, tornou-se um muro. Seria possível transpô-lo? Poderia o leitor ser conduzido ao outro lado? Eu sabia que a resposta era negativa, e no entanto eu também sabia que o “não” teria de se tornar “sim”. Era o desejo, a última vontade dos mortos. Seria preciso quebrar a casca envolvendo a escura verdade, dar-lhe um nome. Seria preciso forçar o homem a olhar.

E é com estas palavras que se encerra esta postagem, afinal, não se pode negar esta forma “primeva” de discurso, seja ela uma História em Quadrinhos ou não, e com isso, entendê-la, dentro de seus limites, mas principalmente, a partir de suas possibilidades, uma forma narrativa e uma expressão cultural.


quarta-feira, 30 de março de 2016

Culturas Negras...

Avaliar os processos culturais no Brasil atualmente é em primeiro lugar, arriscar-se a admitir que somos, por ocasião brasileiros frutos de um país miscigenado, todavia, profundamente racista e preconceituoso, incapaz não de valorizar nossas raízes, mas sim de nunca respeitá-las.

 

Como relatado na música de Paulo César Pinheiro – Toque de Benguela – a mãe África engravidou e pariu a capoeira no Brasil verde e amarelo, mas nesse processo histórico escravagista, acompanhado de mais de 400 anos de sofrimento, por que a visão do ser humano enquanto negro, limita-se apenas a samba e feijoada? Que povo é esse que desconhece Frantz Fanon mas vive a nova Senzala de Gilberto Freyre?

Meus sinceros agradecimentos a Amadou Hampâté Bâ que valorizou a tradição de conhecimento oral, porque apenas essa explica o peso da palavra negro em um país onde mais da metade da população é mas não se reconhece. A falha da aplicação de “consciência negra” estimulada por Steve Biko transpõe a democracia racial de Florestan Fernandes, imperativa na contraditória realidade social, tornando difícil passar por Antônio Sérgio Alfredo Guimarães sem ficar profundamente incomodado com essa definição de raça usada como instrumento social para hierarquização da população.

Por fim, continuamos com nossa “MPB v.1”, caminhando “na trilha” com T$G, sem “amor em SP” de Criolo, mas nos motivando  em Slam Resistência, se a vida é loka e nela só estou de passagem,  a única coisa que me resta é uma “carta à mãe África” porque represento “o soldado que fica” e estou a mais de 70 anos contrariando estatísticas.